UNIVERSIDADE SÊNIOR SANT´ANNA

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CURSO DE EXTENSÃO CULTURAL PARA A TERCEIRA IDADE

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

A Arte de Bem Viver

Eu sei que a gente se acostuma.
Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de fundos e não ter outra vista que não as janelas do redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E à medida que se acostuma, esquece o sol, o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A comer sanduiche porque não dá tempo para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido a vida.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja número para os mortos. E, aceitando os números, não acredita nas negociações de paz. E, não aceitando as negociações de paz, aceita ter todo o dia, o dia a dia da gerra, dos números de longa duração
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro a ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisa tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que se deseja e o de que se necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com o que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E saber que cada vez pagará mais. E a procurar mais trabalho para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. a abrir revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser enganado, induzido, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. A salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios.
Se acostuma a não ouvir passarinhos, a não ter galo na madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta do pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se a praia contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo, conformado. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no final de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir cedo e fica satisfeito porque, afinal, está sempre com o sono atrasado.
Se acostuma a não ter que se ralar na aspereza, para preservar a pele.
Acostuma a evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta e que, gasta de tanto se acostumar, se perde de si mesma.
(Marina Colassanti)


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